quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Plano de Saúde e Perpetuação do Indivíduo

Finalmente, com o sucesso da reposição artificial de neurônios, o tratamento contra a degeneração definitiva do organismo humano ficou completo. Associada ao transplante dos principais órgãos do corpo, incluindo o coração, e às plásticas de rotina, a reposição neural rompeu o último obstáculo anteposto à perenidade da vida individual: a senilidade.

Para o cidadão comum de classe média, bastava despender de 30 à 60% do salário com o pagamento do Plano de Saúde e Perpetuação do Indivíduo, para que, além de ter cobertas as consultas e demais banalidades hospitalares, garantisse, a cada 65 anos, o tratamento completo de reabilitação do organismo, com a reposição e os transplantes já citados. O alto custo do plano acabava por ser parcialmente amortizado, uma vez que o cidadão e a empresa deixavam de arcar com os custos previdenciários, pois não havia mais necessidade de aposentadoria.

Como o funcionário que não se aposentava custava menos às empresas, elas passaram a estimular com vantagens financeiras e de carreira os funcionários que optassem pela perpetuidade.

Aqueles poucos que optaram por continuar se aposentando - e morrendo - não conseguiram mais empregos, e a opção pela perpetuidade acabou por ser amplamente adotada.

Com o decorrer de algumas gerações, devido ao aumento de população, a fronteira dos países em que predominavam os perpétuos teve que se expandir sobre amplas regiões do terceiro mundo.

Décadas mais tarde, foram urbanizadas regiões antes desabitadas ou pouco povoadas – a Amazônia, florestas e savanas Africanas, vastos campos da Ásia, o deserto Australiano e seu complexo insular, além de parques, reservas e demais regiões pouco habitadas no interior dos países.

Apesar do sucesso da ampliação do espaço urbanamente desenvolvido, que já ia ocupando os derradeiros recônditos do planeta, a falta de espaço para os seres humanos perpétuos ainda não estava em vias de ser sanada,e situação era piorada pela diminuição das áreas litorâneas, sistematicamente engolidas pelo mar, devido ao derretimento do gelo polar. Além disso, as populações não perpétuas ainda ocupavam muito espaço.

Mesmo com a extinção das últimas populações que não tinham acesso ao Plano de Saúde e Perpetuação do Indivíduo, e que ainda persistiam em regiões subdesenvolvidas do leste da África e na Ásia central, o problema de espaço persistia, pois a população de seres humanos perpétuos, obviamente, só crescia - e perpétuo, naquele momento, era a condição de absolutamente todos os habitantes da Terra .

Foram especuladas novas soluções para o problema, uma vez que as velhas - super-verticalização das construções, uso extensivo do sub-solo, aterramento sistemático do mar, entre outras, já não bastavam.

Foi então que veio à tona, como não podia deixar de ser, a possibilidade do ser humano perpétuo voltar a morrer. A idéia apavorou principalmente as novas gerações, que tinham exíguo contato com a morte humana, uma vez que haviam nascido depois da extinção das últimas populações não perpétuas, e que além disso muito raramente tinham notícia de mortes acidentais, já que a medicina era eficaz na grande maioria dos casos.

Mesmo entre as gerações mais antigas, a idéia foi repudiada, e aquela primeira geração, que de condenada à morte, trabalhou o dobro pela própria perpetuidade, desacostumada com a idéia de morrer, se negou a corroborá-la.

Mas como a situação havia chegado realmente no seu limite – não cabia mais ninguém em lugar algum - foi decidido que se proibisse a concepção de novos seres humanos. Como houvesse veementes protestos daqueles e daquelas com aflorado instinto de paternidade ou maternidade, retificou-se a decisão, e foi permitida a concepção da nova geração, com a condição, no entanto, de que não tivesse acesso à perpetuidade.

A nova geração foi concebida e a população perpétua assistiu seu fim, tendo sido, inclusive, por duas ou três décadas, fisicamente mais jovens que seus próprios filhos.

A população perpétua, desabituada à morte, teve que passar pelo trauma de voltar a conviver com ela. Pior: tratava-se da morte de seu filhos. Enfrentou ainda o profundo ressentimento dos filhos-anciãos que, antes de partir, acusavam seus pais de terem invertido a ordem natural das coisas, fazendo com que as novas gerações perecessem enquanto as velhas permaneciam.

Por medo dessas acusações, não foi concebida mais nenhuma geração. O desemprego gerado pela falência de todas as empresas que dependiam do público infantil aprofundou as crises sociais, naquela década.

Mas veio o período de reacomodação econômica, acontecida não sem duros percalços, e a população perpétua do planeta passou a desfrutar (apesar da palavra desfrutar, não existiam mais frutas) de uma certa estabilidade.

Estabeleceu-se, sem maiores problemas, um contínuo trabalho de aterramento do mar, garantindo que, se não se ganhasse nenhum espaço, pelo menos não se perdia mais nenhum. Como havia terra e pedra nas grandes montanhas suficiente para mais 300 anos de aterramentos, segundo especialistas, não havia a necessidade de fazer buracos dentro do perímetro urbano, e admitiu-se que a situação não ia mal.

Desde que se estabelecera como rotineira a produção industrial em larga escala do hidrogênio nuclearmente modificado que agora servia de alimento (o único) ao ser humano, tão pouco o problema da fome assolava mais do que antes a população da Terra. Havia, é claro, alguma saudade dos alimentos de outrora, sentida pelas gerações mais antigas e não compartilhada pelas novas.

Histórias, enfim, diziam os mais novos, que não serviam para abalar o indivíduo perpétuo e a homogeneidade físico-biológica (todos aparentavam 45 anos) que se estabelecera definitivamente para todos os cidadãos; e também certa estabilidade social, não menor do que aquela do longínquo... ano 2001, por exemplo.

A nostalgia, quiçá, era o único problema daquela parte da população já referida, nostalgia não só dos alimentos mais variados, mas dos bichos que antes existiam, das plantas, do céu visível, das crianças, dos rios e matas, dos cemitérios, das paias, das montanhas, e de uma certa sensação de movimento que havia no ir e vir - das gerações atravessando o tempo, das crianças atravessando o corredor das casas.

Nenhuma nostalgia, nenhuma falta de espaço, nenhuma ameaça do derretimento dos pólos, nenhuma saudade das crianças, dos bichos ou plantas, nada, em suma, foi tão exasperante para o ser humano perpétuo, quanto duas coisas:

A impossibilidade de mudar as coisas, exceto pela morte.

O medo da morte.

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