terça-feira, 30 de outubro de 2007

Poesias da Semana



Um dia

Passei por uma poesia

- era uma rua.

Lembrei por causa de um pedaço

de papel parado na sarjeta.

Depois o vento mexeu um pouco pro lado.

O meu irmão passava a mão no meu cabelo assim.


Passei por ela,

a pele grossa de concreto,

olho piscando

pela luz quebrada dos postes.


E como uma descoberta

que sempre esteve ali um pouco,

como um carinho e uma aspereza da rua ,

vou dizer rapidinho

que ali tinha alguém.


(Quase não se enxerga

na rua a pele grossa,

a pessoa é saliência

na calçada ou poça.


Quase não se enxergam

a pessoa e poças,

a calçada é saliência

da rua e pele grossas.)


Quem passa pela rua

e por aquela pessoa

pára um pouco para sempre em poema

que o passo seguinte esvai à toa.

sábado, 20 de outubro de 2007

Texto da semana

shshshshsh... dizia a casa de Plínio, quando entrou . Como que forrada pelo carpete desse som, esse shshsh, esse chiado contínuo, que depois ele percebeu que era o chiado da panela de pressão. Mas não era só dela, pelo menos para Plínio na sua memória de coisas e afetos,esse som remetia a uma atmosfera que ocupava o seu pensamento, como que embalando-o, como se fosse possível mergulhar nesse som, mergulhar... mergulhar ... .mergu ...mer....mar! Era isso – era esse também o som do mar, tanto um enorme rumor, tudo dominando tonitroando ao fundo, perene; quanto uma delicadeza de dedos a se esfarinhar “chuá! shshs....” leve, se espalhando pela areia, virando já espuma e sumindo ao se espalhar....

Era definitivamente um som que ocupava um lugar em sua vida, era um chiado da sua existência, que fazia falta sem ele saber, quando não havia, era um som da sua vida. Ah, esse som do mar, espumando...e esse som e esse prazer de mergulhar, esse salgado pra lá e pra cá que enjoava gostoso do mar, como que deixando bêbado....Opa! esse som era som da lata shshs – tlact! ao se abrir, e gluglu, a cerveja, a espuma desaparecendo ao som do mesmo shshs...a cerveja lá, esperando só, a chiar, para tomar e mergulhar naquela sensação. Sempre que mergulhava no mar pensava naquela outra delícia: cerveja, amigos, e deitado na areia, quando a onda vinha a lavar-lhe pelos pés até a cabeça e escorrendo quase leva-não-leva a lhe levar, era a doçura da noite entrando, e moças, e conversas, e aquela empolgação de conversa de bar, que soluciona as mazelas do mundo, a rir e emendar. E tome uma, e mais outra.

Esse som, esse chiado, era o prazer sempre procurado, como uma chuva de algodão, algo a lhe estufar a vida, o em volta do ar. Mas tinha mais.

A panela de pressão, o almoço chegando, o cheiro do feijão! Era essa a sensação: de ter pai e mãe, e comida na mesa todo dia, e alguém querendo sempre que ele comesse...

Ser criança !

E até o xixi – shshsh....também a espumar – sensação boa, o último alívio. Esse chiado, sempre presente na sua vida, era o da casa da sua infância, que Plínio esteve sempre, e estaria sempre, o resto da sua vida, a procurar, a querer para rechear sua vida.

De repente, Plínio, num insight, se reviu ainda antes da sua meninice, Plínio se viu bem pequeno, quase neném. Um tempo em que ele – ele mesmo, esse marmanjão de agora, era pequenininho, todo bonitinho. Teve a nítida sensação do que foi, pra ele, ser essa criançinha de dois anos: amada.

A inocência, puro, puro..... a total dependência e confiança dos pais, o colo e a pele e o cheiro da mãe, o choro e o riso na ponta dos olhos, sempre prontos, como se seus olhos estivessem sempre úmidos, e todos em volta, vendo aquela crinça (ele! a mesma pessoa que ele é agora!), todos sorrindo e achando ele muito lindinho, muito querido mesmo, querido desta maneira: ele dava a todos vontade de pegá-lo, amassá-lo, beijá-lo, e trazer ao colo num carinho.

E, de repente, ele, Plínio agora – em seu insight ele pode sentir claramente isso: “eu perdi minha inocência.” Olhou pras próprias mãos, e viu as mãozinhas suas, que foram, que são. E correu, porque quando criança corria mesmo, realmente com todos os bofes pra fora e sem pensar no coração, e nunca pensava, como agora, “vou ficar cansado?”. E como não tinha mais mãe, correu de braços abertos e gritou “mãe!”, era assim que fazia quando ela chegava do trabalho, não tinha mais a inocência necessária para essa corrida, esses braços abertos, esse chamado pela mãe: fora isso que perdera.

Quando deu por si novamente, chorava, era um adulto todo dobrado, largado como uma bolsa vazia, no chão, aos soluços.

E quando passou a crise do choro, e se acalmou um pouco, foi como um consolo, um afago....desse afago então pôde finalmente perceber da onde vinha aquele som primordial, entendeu da onde vinha o conforto daquele forro, aquele cetim macio ocupando todo o espaço, a fazer shshshshshsh....preenchendo seu cansaço: o primeiro som, mãe de todos os outros, o primeiro chiado ouvido.

Era sua mãe, estreitando sua cabeça no peito, passando a mão pelos seus cabelos, a fazer shshshs....o dedo em pé na frente dos lábios fechados....pedindo siêncio - “dorme, meu filho” – e a cabeça afundada no peito dela, a mãozinha segurando a alça do vestido.

sábado, 13 de outubro de 2007

Texto da semana

Ia começar a partida, e o mundo estava parado. Ali tudo de mim dependia, e um gol era um cuspe bem dado, o mundo solucionado.

Quando eu jogava bola, eu sabia que eu podia, eu colhia com minhas pernas. Quando a bola vinha - ali sim era só eu e a bola, e quanto mais tempo eu ficasse com ela mais tempo eu respirava, era como voar, pelo tempo que dá pra ficar debaixo d´água, e as brechas do campo iam se sucedendo como bolhas de ar, como atalhos, frinchas por onde a água ainda podia escorrer. Era capinar naquele mato de pernas, no final dava certo, indo atrás da direção da ponta do nariz, a gente apostava na rebatida, e se houvese o milagre duma trave que nos interrompia, era um brilho aquele estouro de trave, a gente insistia, até que a rede banhava a bola - um fruto da nossa jogada, e a alma se encharcava. Eram dois tijolos em cima da terra, era gol, e o estádio em peso vibrava.

Quando eu jogava bola e alguém me chutava, era doce esse inimigo, pois eu via que era copa do mundo e era comigo.Quando eu jogava bola, e alguém exclamava, a gente via que tinha torcida e comemorava.

Até que um dia eu pulei dentro do gol, parei de ser quem mandava, eu era mandado e rolava e voava, e a quem pensasse que eu lhe obedecia, eu rolava mais ainda, e o próprio redondo da bola logo prevalecia, pois nunca se sabe onde termina uma volta, e sempre começa outro dia.

Outro dia, aliás, eu vi: era a mesma rua, o mesmo campo, a mesma lama, o mesmo tanto. Como a casquinha do machucado no joelho, nunca cicatrizado, havia um menino, eu havia voltado – ia começar a partida, o mundo estava parado. Ali tudo de mim dependia, e um gol era um cuspe bem dado, o mundo solucionado.